Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos
A imputação subjetiva, em Direito Penal, é um dos solos mais complexos da tipicidade, fundamentalmente a discussão acerca do conceito de dolo como elemento psicológico-descritivo (com o duplo tratamento psíquico – vontade e conhecimento). As breves linhas que se sucedem não possuem o intuito de lançar um ponto final sobre o tema e, tampouco, defender teorias normativistas, mas sim apresentá-las como ponto de partida para a construção de um conceito de dolo dissociado do paradigma da subjetividade. O objetivo é, também, debruçar-se sobre o problema a partir da teoria do direito e dos pressupostos teóricos que fundam a Crítica Hermenêutica do Direito.
A dogmática penal, de há muito, compreende o dolo como expressão da vontade e do conhecimento em relação ao tipo objetivo. Em regra, tem carga psicológica. Ou seja, para identificar a imputação subjetiva em crimes dolosos, o intérprete deverá fazer um exercício que lhe possibilite descobrir o que se passava na cabeça do agente no momento do crime. Evidentemente que se trata de algo inatingível. Na prática, a aferição do dolo ficará ao critério de um sujeito cognoscente e de sua discricionariedade – principal característica do positivismo jurídico e um dos polos do paradigma da subjetividade da Modernidade[1].
Na codificação processual penal brasileira, o dolo encontra-se inserido no art. 18, inc. I, do CPP e refere que o crime é doloso quando o agente quis ou assumiu o risco de produzir o resultado. Como referido alhures, portanto, em terrae brasilis dolo é expressão da vontade e do conhecimento do agente no que toca ao tipo objetivo. Ao revés, no espectro da imputação subjetiva, a culpa assume contornos normativos (imprudência, negligência e imperícia). Daí porque se refere que o dolo é psicológico e a culpa normativa. É no interior da problemática do dolo que se assentam os principais questionamentos sobre o elemento volitivo a partir de um marco estrutural teórico do Direito: é possível na atual quadra da história – em face do giro-ontológico linguístico que enterrou o sujeito solipsista da Modernidade – fundar um critério de imputação subjetiva na impossível tarefa de captar a psique do agente? De outro lado, no plano da interpretação, como um sujeito poderá aferir qual era o animus do agente no ato da realização do tipo? Definitivamente, tentar encampar a interpretação judicial do dolo na vontade do indivíduo acaba por permitir com que o juiz diga qualquer coisa sobre qualquer coisa, na medida em que a concepção dogmática de dolo possui alto grau de subjetividade. O dolo, nesses moldes, reforça a discricionariedade do intérprete, a qual, no interior de um Estado Democrático de Direito, equivale à arbitrariedade[2].
Parte-se, a par dessas constatações, de que o dolo está fundado no paradigma da subjetividade assujeitadora oriunda da filosofia da consciência e – no campo jurídico – reforçado pela discricionariedade quando do momento da realização da interpretação judicial. Tem-se essa concepção porque a compreensão dogmática de dolo como expressão da vontade e do conhecimento resulta em um marco inatingível para o intérprete. Importa dizer, assim, que nas duas pontas há problemas: na estruturação dogmática e legal do conceito de dolo, bem como na interpretação de crimes dolosos. Ou seja, o dolo – como estruturalmente concebido – assenta-se sobre o paradigma da subjetividade e, no plano da decisão judicial, conclama a discricionariedade.
Para construir, portanto, um conceito de dolo que esteja dissociado da subjetividade moderna, é preciso revolver o chão linguístico em que estão assentadas as suas bases, de modo a inserir o debate no interior do giro ontológico-linguístico. É preciso, destarte, proceder com um diálogo interdisciplinar com as teorias hermenêuticas, de modo a compreender que a Modernidade se foi e que no horizonte não há mais como se interpretar as coisas sem considerar a linguagem pública, a historicidade, a tradição e o círculo hermenêutico[3].
Sob o ponto de vista doutrinário, alguns autores têm se debruçado sobre esse tema, como Eduardo Viana, a partir de uma intelecção normativista (recusando, por consequência, a vontade como elemento do dolo). A negação ao conceito dogmático de dolo como expressão da vontade e do conhecimento do agente pode ser destacado na imprecisão havida na distinção entre dolo eventual e culpa consciente. O primeiro representa o conhecimento do agente no tocante à probabilidade do resultado, dotado, porém, de um elemento anímico de indiferença para com este; o segundo se destaca pelo conhecimento em relação à possibilidade do resultado, contudo o agente não considera o desfecho delitivo como possível. Ou seja, a diferença entre ambos – que, por exemplo, em um delito de homicídio representa uma discrepância de mais de 10 (dez) anos nas penas – reside na subjetividade do agente. Daí porque se demonstra o quão problemático pode ser a questão da imputação subjetiva fundada em elementos psicológicos em casos limítrofes ou hard cases.
Objetivamente, Viana pontua que é possível fazer a transição do dolo baseado na vontade para o fundado no conhecimento a partir de critérios produzidos pela dogmática e pela jurisprudência. O dolo deve ser visto, a priori, como o compromisso cognitivo do autor para com a realização do perigo representado. É preciso haver certa uniformidade nesse aspecto. Os pontos de partida são: a) o perigo deve ser o objeto de representação do dolo; b) o perigo deve ser de determinada qualidade e; c) a qualidade será determinada à base da presença ou não de critérios de precisão. Viana assume expressamente a teoria de Puppe – dolo como criação de um perigo adequado para a realização do resultado –, porém propõe preencher alguns espaços de imprecisão de tal teoria. Em suma, “o perigo doloso deve ser objetivamente valorado por um sensato observador externo o qual à luz de determinados critérios, esteja em condições de inferir o dolo e afirmar que o agente que firmou um compromisso cognitivo com o perigo”[4]. Para avançar na argumentação em relação ao ponto antecedente, Viana trabalha com o que denomina de teoria inferencialista do dolo. Quer dizer, a imputação subjetiva da conduta – a título de dolo – depende de um juízo de inferência em relação ao perigo criado. Em princípio, entre a conduta e o complexo de circunstâncias que envolvem o tipo penal deve haver um vínculo relacional. A tese do inferencialismo, nas palavras do autor, “nada mais é que do que um método utilizado para isolar circunstâncias penalmente relevantes as quais, por meio de sua articulação, permitam, ou não, a atribuição de responsabilidade penal”[5].
Essa discussão, por certo, é altamente relevante e hodierna. E ela se manifesta, por exemplo, na hipótese do recebimento de honorários advocatícios maculados, fundamentalmente pela intelecção do art. 2.º, inc. I, da Lei n.º 9.613/98. A imprecisão de um conceito legal de dolo – que, na práxis conforma a discricionariedade judicial – acaba por gerar decisões inautênticas, admitindo-se, por exemplo, dolo eventual no exemplo dos honorários maculados, a despeito de existirem princípios– como o direito de defesa e o da confiança – que não autorizam o intérprete a decidir pela criminalização de tal ação.
O problema, portanto, está bem assentado. Do jeito que se desenvolve a concepção do dolo hoje na dogmática é, por certo, duvidoso e não lida bem com casos limítrofes – como na distinção entre dolo eventual e culpa consciente, um dos maiores sintomas do problema que circunda a concepção de dolo psicológico. As teorias normativistas, nesse cenário, pretendem se desvincular da subjetividade e tentar superar a discussão que atravessa décadas: como construir um conceito de dolo que evite arbitrariedade e afaste decisões discricionárias.
[1] Ver verbete Positivismo: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020.
[2] Ver verbete Discricionariedade: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020
[3] Na precisa lição de Lenio Streck: “círculo hermenêutico quer dizer que sempre ingressamos em um ‘processo’ de compreensão com algo antecipado. Heidegger explica: quando olho para um canto e vejo um fuzil, é porque, de forma antecipada eu já sabia o que era uma arma. Círculo hermenêutico é condição de possibilidade para a compreensão. Se falo de uma inconstitucionalidade é porque antes já sei o que é uma Constituição, Direito constitucional, jurisdição constitucional etc. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020, p. 40.
[4] VIANA, Eduardo. Dolo como compromisso cognitivo. 1 ed. – São Paulo: Marcial Pons, 2017., p. 256.
[5] Ibidem, p. 259.