A Crítica Hermenêutica do Direito confere suporte teórico à interpretação de diversos dispositivos do Código de Processo Penal. A teoria streckiana revolve o chão linguístico em que está assentada a tradição e procede com uma desleitura em relação a distintas teorias jurídicas, especialmente o positivismo – e a sua não superação pelo intérprete brasileiro – e a negação a ideia de discricionariedade judicial. Também, por meio da fusão de horizontes – da filosofia hermenêutica, hermenêutica filosófica e da teoria integrativa de Dworkin –, promove a tese de que existe uma resposta adequada à Constituição e que isto constitui um direito fundamental.
Resposta constitucionalmente adequada pode então ser compreendida como aquela que preserva a autonomia do direito, é alheia à discricionariedade judicial e, a partir de sua fundamentação, respeita a coerência e integridade do Direito. Há cinco princípios que devem servir de filtro: (a) preservação e autonomia do Direito; (b) controle hermenêutico da interpretação constitucional; (c) respeito à integridade e coerência do Direito; (d) dever fundamental de justificar as decisões e; (e) direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada[1].
Sendo o Direito um sistema de regras e de princípios, a CHD está muito longe de defender a literalidade e igualmente distante do empirismo. Existem, portanto, critérios decisórios, tais como os seis motivos que autorizam o intérprete a não aplicar uma lei democraticamente concebida pelo Poder Judiciário: 1) quando a lei for inconstitucional; 2) quando estiver em face de critérios de antinomias (conflito entre normas); 3) quando estiver em face de uma interpretação conforme a Constituição; 4) quando estiver em face de uma nulidade parcial com redução de texto; 5) quando estiver em face de uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto e; 6) quando estiver em face de uma regra que se confronte com um princípio[2].
Com base nessa concepção teórica, é possível identificar, no âmbito do processo penal, alguns entendimentos judiciais que carecem de fundamentação propriamente jurídica. Por isso, analisando especificamente a legislação infraconstitucional, de logo é possível verificar que diversos dispositivos do Código de Processo Penal são relativizados por meio de entendimentos que não conformam a ideia de resposta adequada e que malferem princípios – estes que devem transcender a regra.
É o caso dos arts. 3-A e 6.º, inc. V, do CPP. Tais versam sobre a necessidade de defensor em interrogatório policial. Cuida-se de um bom exemplo de como falsas premissas repetidas ao longo dos anos pela dogmática sustentam o imaginário do intérprete brasileiro. A Constituição Federal de 1988, estabeleceu em diversos dispositivos a adoção do sistema acusatório. O art. 3-A, mais recentemente, positivou a estrutura acusatória. No entanto, há quem ainda sustente que o processo penal é formado por uma estrutura mista – inquérito é inquisitorial (que é refém do esquema sujeito-objeto e que sustenta o subjetivismo do intérprete) e processo é acusatório. O art. 6.º, inc. V, CPP, estabelece a necessidade de acompanhamento de advogado no interrogatório policial. Os tribunais relativizam essa regra e assentam que o advogado é prescindível, porém, o interrogado deve conhecer e ser cientificado dos seus direitos (Miranda rights – Miranda vs Arizona, 1966)[3].
Daí que se questiona: como é possível sustentar no processo penal dois princípios que são antagônicos? Se a estrutura é acusatória, logo deverá ser empregada em toda a persecução criminal, inclusive no inquérito policial. Os dispositivos mencionados estabelecem que os direitos assegurados ao réu em processo penal serão os mesmos conferidos no interrogatório policial. A sua inobservância não encontra uma justificativa idônea e não passa por um filtro hermenêutico-constitucional.
O art. 212 do CPP é um dispositivo que conforma o princípio acusatório no processo penal. O dispositivo impede que o juiz assuma a função de produzir a prova à revelia das partes. A sua não observância – de acordo com os tribunais – é causa de nulidade relativa, que demanda o impreciso prejuízo[4]. É um típico caso de que não há justificativa para aplicação do dispositivo em sua literalidade, já que a concepção própria desse é evitar com que o juiz produza prova. Juiz somente pode esclarecer aquilo que – produzido pelas partes – não lhe ficou claro.
No mais das vezes, é um exercício homérico tentar comprovar o tal prejuízo que resulta da violação de um artigo de lei. O pas de nullité sans grief – princípio calcado em uma tradição inautêntica – é utilizado como um álibi retórico, como se responder a um processo criminal à ilharga de dispositivo legal não seria, por si só, um prejuízo.
O art. 231 do CPP permite a juntada de documentos em qualquer fase do processo criminal. A jurisprudência compreende que é possível a anexação de provas pela acusação até o término da instrução, antes do oferecimento dos memoriais[5]. Típico caso em que o artigo não deve ser lido em sua literalidade à base da sexta hipótese para não aplicação de uma lei em sua literalidade: se a juntada não for efetuada até o protocolo da Resposta à Acusação – momento em que o acusado lança mão de sua estratégia defensiva e constrói a sua intenção probatória – evidentemente que há violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa. De igual modo, possibilita com que o Ministério Público possa proceder com um agir estratégico, suprimindo provas e as anexando ao longo da persecução criminal em juízo.
O art. 254 do CPP estabelece as hipóteses de suspeição do juiz criminal, das quais se enaltece a inimizade capital. Jurisprudência, de há muito, compreende que o rol é taxativo (como se a regra fosse autossuficiente), a exemplo do HC n.º 95.518, do Supremo Tribunal Federal, em que pese hoje já encontre resistência. Outro caso que impede a interpretação literal do dispositivo, na medida em que por detrás da regra inserta no art. 254, está a tutela do princípio da imparcialidade. Logo, mesmo que agindo sob uma capa de estar cumprindo funções inerentes à atividade judicante, o juiz poderá ser declarado imparcial, sem precisar se ater às hipóteses elencadas no artigo. Uma vez mais: o princípio, como bem refere Streck, transcende a regra.
O art. 403 do CPP dispõe que o prazo para apresentações dos memoriais em processo penal inicia-se pela acusação e depois para a defesa. Uma interpretação em consonância com o texto constitucional indica que há exceção quando presente corréu colaborador. Logo, observando o princípio do contraditório, a regra estabelecida não pode ser lida de modo literal e é excepcionada nessa hipótese.
E, por último, o art. 637 do CPP, estipula que o Recurso Extraordinário não tem efeito suspensivo. É possível, no entanto, aplicar em sua literalidade? Não. Mas só se houver condenação, justamente porque a sua não aplicação somente é possível caso exista a necessidade de tutela do princípio da presunção de inocência e da vedação da prisão-pena antes do trânsito em julgado. De outro lado, na ausência de pena a cumprir, não há motivo para não aplicar a lei. Direito é uma questão de caso concreto e não há uma regra universal para tratar todos os casos indistintamente.
Daí porque se revela como absolutamente necessária a CHD para a construção de um direito mais igualitário e menos suscetível a decisões discricionárias. Ou mesmo, decisões que precedem o fundamento (como se o intérprete atravessasse uma ponte para depois pavimentá-la, como refere Streck). A análise literal e divorciada da ideia de resposta constitucionalmente adequada faz do CPP um terreno fértil para o cometimento de equívocos judiciais e enfraquecem o Direito e a democracia como um todo.
[1] BARBOSA, Ana Júlia Silva. QUARELLI, Vinicius. O que é isto – a Crítica Hermenêutica do Direito. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-11/diario-classe-isto-critica-hermeneutica-direito .
[2] STRECK, Lenio Luiz. Resposta adequada à Constituição (resposta correta). Dicionário de Hermenêutica: Quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017.
[3] A exemplo: Apelação Crime, Nº 70070707112, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ricardo Coutinho Silva, Julgado em: 23-11-2017.
[4] A exemplo: HC 298.169/RS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 11/10/2016, DJe 28/10/2016.
[5] A exemplo: AgRg no AREsp n. 1.962.716/PR, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 13/12/2021.