O art. 28 do Código de Processo Penal estabelece que o juiz criminal poderá, se entender adequado, determinar a revisão da decisão ministerial de promover o arquivamento de inquérito policial à instância revisional da instituição. Esta última decidirá, em última análise, pela viabilidade de denúncia criminal ou não. Daí avultam-se algumas questões que sugerem problemas na práxis forense: (i) se o Ministério Público promove o arquivamento e o juiz não se manifestar a respeito da necessidade de remessa ao órgão superior, não haverá possibilidade de rediscussão quanto ao cabimento da denúncia. Sendo o agente ministerial o detentor da opinio delicti, quais serão os critérios que deverão ser levados em consideração pelo juiz na hora de determinar a revisão? (ii) quais os recursos que a vítima irá dispor para se insurgir contra uma decisão definitiva de arquivamento que é alheia, por exemplo, à Constituição Federal? Igualmente para a vítima, compreendida como parte no processo penal, há um direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição?
Imaginemos o seguinte cenário: uma menor de idade é vítima de maus-tratos perpetrada por um dos genitores. A criança fica com lesões comprovadas por auto de exame de corpo de delito. O Ministério Público, ao analisar o fato, dispõe que o Estado não pode se incursionar sobre questões que são afetas ao “direito de educar” conferido aos pais. A promoção de arquivamento é absorvida pelo juízo criminal e, logo, vai arquivada sem a revisão da instância superior do parquet. A hipotética situação viola a Constituição (art. 227), o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 18-A, parágrafo único, inc. I, alínea b), que veda o uso de força física na educação de menores que resulta em lesão e, por último, a jurisprudência que, em muitas oportunidades, assentou que o “direito de educar” não confere aos genitores carta branca para exercer qualquer tipo de educação por meio de agressão. Em resumo, a presença simultânea do binômio castigo físico e lesão demanda, de imediato, a tipificação do delito, sendo, pois, um crime de perigo abstrato.
Até que ponto o Ministério Público pode se valer da sua competência exclusiva para promoção de ação penal pública incondicionada? A ação penal pública subsidiária, que é um instituto que foi pensado para esses casos, somente se aplica diante de inércia do Parquet e não necessariamente de sua recusa em denunciar[1]. O membro ministerial, não por acaso, conserva as mesmas garantias que a magistratura. Age não só como o titular da ação penal, como também como “fiscal da lei”. Recentemente, na ADI 4768, o Supremo Tribunal Federal assentou que não viola a Constituição o fato de o Ministério Público se posicionar ao lado do juiz na sala de audiências. A Ministra Carmem Lúcia, relatora da ação, reafirmou a importância alcançada ao órgão ministerial pela Carta Política de 1988 e o assento, ao lado do magistrado, advém, primeiro, de uma tradição e, segundo, da função desempenhada de “advogado do povo”, que deve agir em nome da coletividade, de modo imparcial e com absoluto respeito ao Direito. Para além da discussão no particular da ADI, é certo que o membro ministerial possui uma relevância singular que lhe foi outorgada pelo constituinte de 1988.
É usual que denunciemos casos de excesso punitivo do Ministério Público, a partir de denúncias ineptas ou infundadas que se valem de princípios de tradição inautêntica como, a exemplo, o in dubio pro societate – que nada mais é do que um álibi retórico (expressão cunhada por Lenio Streck) para que se ofereça uma denúncia que não reúne elementos necessários à configuração do tipo penal. Porém, o contrário também precisa ser sopesado: quando o MP não denuncia, quando deveria fazê-lo. No caso da decisão de não denunciar, o órgão ministerial, enquanto instituição, é o detentor da última palavra. Isso se reforça a partir de vários entendimentos jurisprudenciais que estabelecem autonomia irrestrita ao Parquet na formação da opinio delicti, a exemplo do decidido na ADI 4693 pela Suprema Corte e no enunciado sumular 524 também do Pretório Excelso.
Voltemos então à celeuma que, apesar de hipotética, representa, em essência, alguns posicionamentos jurisprudenciais que, sem muito esforço, é possível encontrar[2]. Se o Ministério Público invoca um pretenso “direito de educar”, que se traduz em lesão corporal com animus corrigendi, é óbvio que se cuida de uma anomalia jurídica, de uma decisão institucional absolutamente equivocada e contrária ao texto constitucional. Nesse ponto, a Crítica Hermenêutica do Direito – como amplamente difundido no Diário de Classe – consegue entregar ao nosso hipotético caso uma resposta adequada à Constituição. Ainda que seja preferível se ater aos limites semânticos do texto, existem somente seis possibilidades em que o Poder Judiciário é autorizado a não observar a regra democraticamente construída[3]. Dentre estas, destacam-se a não aplicação da lei por ser ela própria inconstitucional ou quando a regra confronta um princípio (partindo do pressuposto que princípios possuem força normativa). Equivale dizer, de tal arte, que se o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece uma vedação a castigos físicos que resultem em lesão, ainda que no exercício de um poder de disciplinar ou corrigir, é possível afirmar que não há – em um filtro hermenêutico – a desnecessidade de sua aplicação. Por evidente, a violação ao disposto na lei de proteção à criança e ao adolescente reclama censura penal.
Nesses casos, o papel conferido ao juiz é o de assegurar também o direito da vítima de obter uma resposta adequada à Constituição. Ou seja: é possível a intervenção judicial sobre decisão ministerial de não denunciar, conquanto se verifique, no caso concreto, uma decisão discricionária e alheia a uma tradição jurídica autêntica. Da mesma forma, já nos posicionamos no sentido de ser possível a revisão judicial da não proposição de Acordo de Não Persecução Penal[4], com fulcro também na concepção de que, em regimes democráticos, nada pode ser discricionário, nem mesmo a opinio delicti do Ministério Público.
O fato de competir ao agente ministerial a promoção privativa da ação penal, à luz do que dispõe o art. 129, inc. I, do texto constitucional, não importa dizer que esse é isento de um accountability em fundamentar as suas decisões (art. 93, inc. IX, CF). Não pode, portanto, basear as suas convicções em fatores extrajurídicos, políticos ou morais. Uma decisão contrária ao Direito deve ser submetida ao exame do magistrado, sob pena de excluir do Poder Judiciário a apreciação de ameaça ou lesão a direito fundamental. Também, é papel da doutrina, em seu turno, fazer o constrangimento epistemológico, i.e. “criticar os equívocos dos que detêm o poder de dizer e construir o Direito”[5], evitando-se, assim, juízos solipsistas e característicos do sujeito da Modernidade igualmente no que se refere às decisões de todos os atores que estão institucionalmente ligados ao Direito, incluindo o Ministério Público.
[1] Veja-se, a propósito: AgRg no REsp n. 1.508.560/SP, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 6/11/2018, DJe de 22/11/2018.
[2] Como, por exemplo: JUIZADO ESPECIAL. AÇÃO PENAL. MAUS TRATOS. ART. 136, CP. CASTIGO FÍSICO APLICADO CONTRA O FILHO. ANIMUS CORRIGENDI. EXCESSO NÃO DEMONSTRADO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA.
– Restou incontroverso que a denunciada teria batido em seu filho menor com o uso de um cinto, causando-lhe as lesões descritas no laudo acostado aos autos. Todavia, a sentença julgou improcedente a denúncia, entendendo não haver provas para a condenação da ré pela prática do delito de maus tratos.
– O crime elencado no artigo 136 do Código Penal configura-se quando o agente, abusando dos meios de correção ou disciplina, expõe a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, ou seja, é preciso que se use em excesso ou de modo inconveniente os meios disciplinadores, sem o que a conduta não pode ser considerada criminosa, mas apenas mero exercício do direito de correção (ius corrigendi).
– Na hipótese, o depoimento da única testemunha e da vítima confirmam a utilização de um cinto pela denunciada no intuito correcional, entretanto não há qualquer prova de que a ré tenha agido com a intenção de causar risco à vida ou à saúde do seu filho, razão por que deve ser mantida a sentença que julgou improcedente a pretensão estatal, absolvendo a acusada por falta de provas da prática delitiva.
– Recurso conhecido e desprovido.
– Decisão proferida nos termos do art. 82, § 5º, da Lei 9.099/95, servindo a ementa de acórdão. JUIZADO ESPECIAL. AÇÃO PENAL.
(Acórdão 914548, 20110710198925APJ, Relator: LUÍS GUSTAVO B. DE OLIVEIRA, 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, data de julgamento: 11/12/2015, publicado no DJE: 25/1/2016. Pág.: 399)
[3] São eles: 1) quando a lei for inconstitucional; 2) quando estiver em face de critérios de antinomias (conflito entre normas); 3) quando estiver em face de uma interpretação conforme a Constituição; 4) quando estiver em face de uma nulidade parcial com redução de texto; 5) quando estiver em face de uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto e; 6) quando estiver em face de uma regra que se confronte com um princípio. STRECK, Lenio Luiz. Resposta adequada à Constituição (resposta correta). Dicionário de Hermenêutica: Quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017.
[4] Veja-se em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-07/diario-classe-anpp-partir-critica-hermeneutica-direito
[5] Veja-se em: https://estadodaarte.estadao.com.br/direito-constrangimento-epistemologico-streck